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RECONHECIMENTO FACIAL - PARA ALÉM DA PROTEÇÃO DE DADOS

 

Pouco discutida é a questão do reconhecimento facial que vem sendo implantado à revelia do cidadão, ainda mais ante os avanços da IA pelo mundo afora. O que vamos falar, infelizmente, já esteve nas páginas de livros sobre distopias e na tela dos cinemas, mas agora passeia no mundo real e acena aos mais atentos.

 

Direito à intimidade.

A coleta de dados pessoais de reconhecimento facial (inclusive e especialmente por agências governamentais) levanta preocupações ante os impactos na vida do cidadão. Por exemplo, ameaça à privacidade, pois envolve a captura de informações biométricas sem o conhecimento ou consentimento do indivíduo (um adeus ao direito ao privado?). Basta ver que a coisa, já usada no Brasil, está afetando diretamente esses direitos. Como exemplo recente temos o infame “educatron” das escolas paranaenses que, a despeito de falhas e erros no sistema, a ideia em si é um poder de controle tão invasivo quanto ofensivo, pois visa, inclusive, reconhecer os sentimentos que os alunos expressam mediante microexpressões faciais (sim, essa tecnologia existe há algum tempo). O Estado e seus agentes serão os fiscais de suas emoções?!

O problema se desdobra na vigilância em massa, pois o uso generalizado da tecnologia monitora ininterruptamente locais públicos (sem falar que existem câmeras de alta resolução que “alcançam” centenas de metros). Esse ambiente de vigilância constante é um poder que, num estado policial (para o qual caminhamos), poderá tornar o ambiente absolutamente opressor.

 

Uso Indevido ou, ao menos, duvidoso, dos dados.

A má utilização por entidades governamentais (e empresas) eleva ao risco de identificação incorreta, discriminação, perseguição, assédio e à própria invasão de privacidade (o direito de não se tornar público, passar anônimo, ter sua vida íntima e sentimentos reservados apenas a quem a pessoa quiser revelar).

O problema maior é que, a cada dia que esta situação deixa de ser seriamente discutida pela sociedade, a palavra “confidente”, “anônimo” ou “privado” soam estranhas e até agressivas. Evidentemente uma falha na compreensão da amplitude das consequências do reconhecimento facial. Este impacto ainda engloba o psicológico e a própria Liberdade de Expressão das pessoas.

O que queremos dizer é que a questão está longe de ser algo restrito à “proteção” de dados.

 

A caixa de pandora

Uma versão sobre a mitológica Pandora é a de que, criada pelos deuses, foi mandada por Júpiter, com boa intenção, a fim de agradar ao homem. O rei dos deuses entregou-lhe, como presente de casamento, uma caixa, em que cada deus colocara um bem. Pandora inadvertidamente abriu-a, e todos os bens escaparam, exceto a esperança. Assim, sejam quais forem os males que nos ameacem, a esperança não nos deixa inteiramente; e, enquanto a tivermos, nenhum mal nos torna inteiramente desgraçados (Thomas Bulfinch, O livro de ouro da mitologia).

Recentemente a corte do Reino Unido tomou uma decisão a respeito de uma empresa fornecedora desta tecnologia, a Clearview AI. Decidindo que o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) do Reino Unido não se aplicava ao processamento de dados pessoais pela empresa uma vez que prestava serviço a entidades governamentais de países estrangeiros, e que os dados não eram de titulares do reino Unido. Os principais pontos do caso foram que a Autoridade de Proteção de Dados do Reino Unido (ICO) alegou que a Clearview AI infringiu várias disposições do RGPD e do RGPD do Reino Unido, incluindo princípios de proteção de dados, legalidade do processamento, processamento de dados de categorias especiais, obrigações de transparência, direitos dos titulares de dados, tomada de decisão automatizada e avaliação de impacto na proteção de dados. No fim, embora as atividades da Clearview AI pudessem estar dentro da abrangência territorial do RGPD do Reino Unido, elas estavam fora da sua abrangência (competência) material, pois a Clearview AI oferecia serviços exclusivamente a agências estrangeiras e com dados não relacionados a titulares do Reino Unido.

O que queremos dizer é que a Clearview AI atuou em total desconformidade com a lei de proteção de dados (e além!).

Simples? Sim, porém, desastroso. Nos parece que a caixa aberta veio deixar escapar o bom senso.

A tecnologia é capaz de muita coisa boa, mas usada de forma abusiva, é um desastre total.

Deixando de lado a questão da aplicação das leis de proteção de dados transfronteiriças (incidência Territorial e Material das Leis de Proteção de Dados), por exemplo, vimos esquecendo de algumas palavrinhas básicas: privacidade, fiscalização, emoções, vigilância, massa, opressão, e, uma vez ignoradas nesse processo de implantação dessa tecnologia (sem falar de sua soma com outras), poderão levar nossa sociedade a um totalitarismo tecnológico sem precedentes. A notícia do Reino Unido (a questão de fundo) é bem assustadora, mas parece não preocupar muito por aí.

O tema é complexo, todavia, deixa-lo de lado é retirar do cidadão a chance de decidir entregar ou não mais uma parcela de sua liberdade ao Estado, não para que este cuide bem de nós, mas para nos tornar o próprio alvo da vigilância como potenciais criminosos.

Podemos dizer que a esperança não nos deixara, ainda, inteiramente?

Fico por aqui.

 


*Elvis Rossi da Silva. Cristão, pai de família, advogado. Autor de artigos jurídicos, escritor e jornalista independente.

 

Livros do autor: Circo Do Mundo  , Fábulas para Hoje  , Pensamentos ao Filho  , Contos Para a Infância , Plúrimas  , Aos Amigos que Não Tenho

 

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