Certas declarações chocariam o mais relapso aluno primeiranista de direito ao fazer questionar o significado de liberdade de expressão alicerçado pelos séculos, além de pôr em xeque a aviltada exigência de notável saber jurídico exigido pela Constituição Federal para o exercício de certas funções.
Certa autoridade causou “perplexidade”
(para dizer o mínimo), ao afirmar, em suma, que um criminoso, ao jogar um homem
de cima de um viaduto, teria levado ao extremo a liberdade de expressão. Seria risível, não fosse trágico. Para
além da mera ignorância, veremos que tal declaração indica um propósito. Porém,
vamos por partes.
Lembremos antes que a liberdade
de expressão está presente em diversas constituições de países livres, além de garantida
pelos mais importantes tratados de direitos humanos. Trata-se do
direito de manifestar ideias, opiniões, crenças, críticas e visões de mundo sem
medo de censura ou punição arbitrária. Esse direito inclui a expressão oral e
escrita (e simbólica — como caricaturas ou performances teatrais, obras de arte
e protestos pacíficos). Importante destacar que a liberdade de expressão está
relacionada ao campo das ideias e da comunicação. Ela não abrange, por
natureza, atos físicos (muito menos de violência). Ao contrário, a preservação
da livre manifestação do pensamento é justamente o que ajuda a afastar o uso da
força como forma de resolução de conflitos ideológicos ou políticos.
Quem não me deixa mentir é a mais
célebre defesa da liberdade de expressão, a obra “Areopagitica” (1644), do
poeta inglês John Milton (procure no Blog e terá um resumo da obra). Publicado
em um momento de intensa censura governamental na Inglaterra, Milton defende a
livre circulação de ideias, inclusive aquelas consideradas heréticas ou
inconvenientes, publicadas em livros ou outros meios, pois eram essenciais para
a busca da verdade. Ele havia entendido, séculos antes da nossa celebridade
jurídica, que apenas no embate aberto e honesto entre opiniões divergentes a
sociedade poderia crescer intelectual e moralmente.
Milton defendeu o óbvio (embora hoje
pareça não ser mais tão óbvio assim), o direito de publicar (expressar) e ler (alguém
poder buscar e conhecer) ideias sem o crivo prévio do Estado. Essa é a liberdade
de expressão em seu sentido primordial: o embate de ideias divergentes que, ao
serem apresentadas publicamente, podem ser analisadas, contestadas e
eventualmente superadas por ideias melhores, mas nunca pela força bruta.
É preciso ainda citar a doutrina
jurídica norte-americana, assentada na Primeira Emenda da Constituição dos EUA,
indicada como uma das mais firmes em matéria de liberdade de expressão. A
Suprema Corte dos Estados Unidos tem, ao longo dos anos, declarado que mesmo
discursos ofensivos, chocantes ou perturbadores estão protegidos, pois a
democracia depende da possibilidade de expressão irrestrita das ideias (não se
trata de incitar a violência ou ações criminosas, que ultrapassam o campo do
pensamento e entram no domínio da ação). Infelizmente vemos o caminho oposto
por aqui.
Toda essa volta é necessária para
tentar evidenciar o evidente, que a declaração que relacionou um assassinato à
liberdade de expressão é, na melhor das hipóteses, um grave e indesculpável equívoco
jurídico e, ao fim, moral. Mas, no fim, é muito mais que isso. A declaração,
além de revelar uma distorção conceitual profunda — ao confundir ideias e
opiniões com atos violentos —, o que sugeriria um grave problema na capacidade
de juízo do sujeito, ao mesmo tempo, equivocada e perigosa, assenta-se sobre a falsa
premissa de que a manifestação do pensamento poderia, em algum nível,
justificar agressões físicas ou mesmo assassinatos. Todavia, essa lógica, não
é fruto de ignorância jurídica, o que já seria suficiente para preocupar o mais leigo jurista de
plantão, mas pode ser explicada como indicador de interesses obscuros, equiparando
palavras a atos de violência, com um propósito muito claro, consolidar o poder nas mãos de uma elite para restringir direitos, calar e, se possível, eliminar da vida pública qualquer voz opositora.
Manter tal indivíduo (ou indivíduos que, pelas suas ações ou omissões, compactuam com o fato) exercendo a função é um risco à nação. Se fosse por ignorância, mantê-lo no cargo já traria
insegurança, pois que decisões sairiam de tão despovoada mente senão as que, fragilizando as liberdades fundamentais, culminariam em consequências nefastas para a
sociedade. Por outro lado, se a confusão é intencional, como é evidente, revela interesses tão obscuros
a ponto de criar um cenário nacional ainda mais sombrio do que já vivemos, no qual a retórica de
equiparação entre fala e violência é estrategicamente usada para amordaçar
vozes dissidentes, restringir o debate público e submeter a coletividade ao
arbítrio de uma elite autoritária.
Em ambos os casos, os prejuízos
são evidentes: seja como um ignorante com canetas de ouro, seja como um agente
mal-intencionado, tal indivíduo põe em xeque a segurança do regime de
liberdades.
Portanto, não se trata apenas de
criticar um deslize retórico, mas de deixar claro ao público que o que temos
visto está para além de uma gafe de gente inculta, estamos diante de uma
retórica mal intencionada, manipuladora e sistematizada para destruir aquilo que ainda nos
resta de liberdade.
*Elvis Rossi da Silva. Cristão, pai de família, advogado. Autor de artigos jurídicos, escritor e jornalista independente.
Livros do autor: Circo Do Mundo , Fábulas para Hoje , Pensamentos ao Filho , Contos Para a Infância , Plúrimas , Aos Amigos que Não Tenho
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