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O TERMÔMETRO NOSSO DE CADA DIA

O TERMÔMETRO NOSSO DE CADA DIA

OU

A LIBERDADE É NEGOCIÁVEL?

  

As coisas andam para uma alienação da liberdade sem precedentes, onde a população simplesmente aceita qualquer coisa vinda do estado, ainda que sem lei, sem comprovação de eficácia e sem importar o resultado de tudo. 

Para mim isto beira à psicose. 

A palavra “saúde pública” parece que tornou-se um Pir Lim Pim Pim moderno. Saúde não é e nem tem como ser separada da “vida real”, quer dizer, na vida real, em sua complexidade, a saúde, a economia, o trabalho e a liberdade fazem parte de um mesmo ‘pacote’. Não é possível separar esses elementos como se fosse um livro de anatomia onde a ‘pessoa’ é vista em partes; ora, nem preciso dizer que não é uma pessoa no livro, mas apenas a figura que a representa; a pessoal real estaria sem vida se fosse dividida como nas figuras, já não seria mais a pessoa. A vida real também é assim.

Não bastassem as máscaras (e não vou ficar falando de microbiologia, virologia, infectologia, pneumologia ou de EPIs aqui, há bons livros de medicina sobre isso), os medidores de temperatura andam na moda e causando mais perda de direitos civis.

Eu vou me dispensar de ficar falando detalhadamente da extensão e importância de direitos civis e dentre eles da intimidade, da vida privada, da autodeterminação, do sigilo de dados pessoais, e da extensão das liberdades públicas em face do estado.

Vamos ao tema.

A medida de tomar a temperatura da pessoa é uma medida que expõe um dado de saúde da pessoa, portanto, da sua intimidade, e não pode ser publicada ou publicizada sem o consentimento da pessoa (o que já é controvertido se é possível), simplesmente porque é um dado, como se sabe, da personalidade da pessoa (sua temperatura é sua e diz respeito a você e a quem você, e só você, quiser divulga-la).

Você pode estar dizendo, “mas em casos excepcionais, a lei pode limitar esse direito”.

Exato, em casos excepcionais, previstos em lei formal, federal e, ao meu ver, deveria ser apenas por lei complementar (pois a lei complementar tem finalidade de mitigar a influência das maiorias parlamentares circunstanciais – conchavos espúrios e ao arrepio da vontade do povo - processo legislativo referente a matérias de relevância evidente, isso decorre de um juízo de ponderação fruto do sopesamento entre os princípios democrático, previsibilidade, confiabilidade e legitimidade, tão importantes na elaboração das leis que tratam de questões de extraordinária relevância econômica, social ou política). Aliás, a própria lei não pode eliminar o direto (pois é humano fundamental), mas restringi-lo (como eu disse, por lei complementar) na medida do necessário e com muita cautela e ‘caldo de galinha’.

Inclusive, a legislação que trata sobre o assunto de notificação de epidemias e doenças contagiosas no Brasil é clara (vou dar um exemplo – embora eu a considere deficiente e autoritária), de modo que a lei 6.259/1975 exige a obtenção do consentimento prévio do cidadão 'paciente' para qualquer notificação compulsória de doença (nos casos especificados pela lei), porém, restringe os dados aos órgãos do governo oficiais para estas ações 'médicas'. Não há previsão, nem poderia, de divulgar tudo na frente de todos. Mesmo que um médico efetue este procedimento, o clínico não pode revelar aos demais nem a circunstantes a temperatura corporal do cidadão. É uma exposição não apenas vexatória, é uma estigmatização da pessoa.

Apenas hipoteticamente seria a referida medida “médica” legítima em duas situações cumulativas (ao nosso ver): 1 - se existir “consentimento expresso” do cidadão e 2 - se a medição for realizada por “um profissional de saúde sujeito a sigilo ou por outra pessoa com dever de confidencialidade designado oficialmente pelo ‘departamento’ médico ou correspondente do governo” (são cumulativas!). Apenas um médico pode medir a temperatura. Testes têm de ser feitos por médicos, num quadro em que seja necessário e a pedido do paciente, ou em casos restritos e sob sigilo, quando caso de interesse público e em casos de notificação compulsória.

De modo que nem empresas, nem estabelecimentos públicos, nem estabelecimentos privados de acesso público podem medir a temperatura dos cidadãos (e nem de trabalhadores) para detectar qualquer coisa que seja (muito menos exigir exames de sangue), muito menos sem um médico junto.

Se não se pode exigir teste de gravidez de empregada, ou de esterilização de qualquer empregado, por qual motivo se exigiria, de todos, testes de doenças? Isso me cheira a um perigoso processo de abertura, uma semente malígna para uma higienização social disfarçada – eugenia moderna - (que tal fazer também um teste de DNA para ver se no futuro ficará doente, ou se terá filhos normais, viáveis, ou se é propenso a crimes, ou se é de uma raça superior? – melhor não).

Pois bem.

Mas e se a pessoa estiver transmitindo algo para os demais?

Existem leis penais que tratam de um crime a respeito. Não é preciso destruir todas as liberdades civis da humanidade para cuidar disso.

Mas e a vida das pessoas, não conta?

Aí é que entra a questão posta: A liberdade é negociável para você? Qual o preço dela? A vida existe sem liberdade? Até onde pode o Estado (um governante) entrar na sua vida? Pode responder, por favor. Eu tenho minha humilde opinião. Imagine um dia se disserem que por causa de uma pandemia qualquer mulheres grávidas possuissem mais probabilidade de infectar pessoas e por isso, deveriam abortar. Qual seria a diferença? Não é a ciência falando e protegendo as vidas?

Mesmo com consentimento expresso da pessoa é preciso cautela, pois a limitação dos direitos de personalidade está em jogo, de modo que a qualquer momento a pessoa poderia revogar esse consentimento.

A intimidade, o segredo relativo à saúde, à situação clínica do cidadão, deve ser protegido, pois se se pode violá-lo, se pode violar qualquer outro (se pode o mais, se pode o menos).

Por isso leis que restringem direitos da personalidade, direitos civis, devem ser ampla e previamente discutidas com a população do país antes de serem aprovadas (pelo visto nossas leis em sua maioria carecem dessa legitimidade). Como já falei em algum lugar neste site, o Legislativo não é ilimitado.

Ainda pior fica a questão se se tratar de menores de idade, “não basta o interesse legítimo do responsável ou de um terceiro em prevenir o ‘contágio de uma doença’ por outras crianças (estou falando de escolas), pois os mesmos direitos se aplicam a elas e, com um plus, por tratar-se de crianças – menores de idade – a lei lhes dá (inclusive a constituição) tratamento diferenciado, preferencial e privilegiado, também fundamental.

Outro aspecto. Se tratarmos a questão apenas como “dados”, ainda assim, para se ter como lícito o “tratamento desses dados”, também seria necessário o consentimento da pessoa, vez que está em causa “um dado relativo à saúde”, cujo tratamento está por regra proibido (dados sensíveis de saúde).

Outra coisa, é evidente, mas deve ser dito, que realizar-se ou não o respectivo registo de dados, no caso da temperatura corporal, a “licitude” (se é que é lícita) deste procedimento depende, em primeiro lugar, do consentimento do titular dos dados, do cidadão, mas, para este consentimento ser válido, tem de ser dado em condições que garantam a liberdade inerente a essa manifestação. Imagine uma situação de constrangimento, pressão; certamente não será válido. Aliás, a coação, seja física ou moral, para o direito, invalida (nulifica) qualquer ato. Aliás, não há manifestação de vontade se ela não é livre e consciente para produzir efeitos lícitos.

Mas não se trata de um ato privado, é público! Podem argumentar.

Piorou! Por ser público (sem falar que a ausência de vontade expressa gera um ato ilícito), necessita, realmente, de ater-se aos casos e à forma traçada previamente pela lei, e as leis que indicamos (inclusive de tratamento de dados) exige o consentimento expresso ou, ao menos, o sigilo médico. E mais, qualquer conseqüência (penalidade ou medida restritiva) aplicada pelo poder público, só pode ser prevista em Lei formal, motivada, aplicada por agente competente definido na lei etc., sob pena de responsabilidade penal e administrativa do agente. 

Aí eu pergunto (e é uma questão fundamental): na entrada do trabalho, do supermercado, da farmácia, da escola, há liberdade para a manifestação, ela será livre?

Ademais, pressupõe-se não apenas informações claras sobre as condições do tratamento de dados pessoais e sobre as conseqüências do mesmo, mas também que essa manifestação de vontade explícita não esteja condicionada ou prejudicada pelas eventuais repercussões (ou pela ameaça de repercussões) que a recusa da sua emissão possa ter.

Aí perguntaria: “qualquer ameaça ou uma qualificada?”

Ameaça nestes casos, em si, já são qualificadas por suas conseqüências, não são meros “dissabores comuns do dia a dia”; por exemplo, “não entrar na escola”, “usar pulseira identificando quem é vacinado ou não”, “não poder entrar numa farmácia para comprar um remédio”, “saber se a pessoa já teve ou não ou tem alguma doença”, “não poder entrar num supermercado para comprar a comidinha do filho” etc., são mais que qualificadas. Veja que algumas são estigmatizantes (rotulam a pessoa, faz os outros terem uma visão muito negativa sobre ele) e outras podem até matar a pessoa.

Tem mais. Órgãos públicos ou de caráter público não podem publicar dados de saúde com identificação das pessoas a quem os mesmos dizem respeito, nem que possibilitem a identificação da pessoa (exemplo deste último, “rua tal possui tantas pessoas”, ou “idosos da região tal do bairro tal” ).

Recordando que esta informação (sem repetir sobre direitos fundamentais) está sujeita a um regime jurídico especialmente protegido, por corresponder a uma categoria de dados pessoais que é suscetível de gerar ou promover a estigmatização e a discriminação dos respetivos titulares.

Só com o consentimento dos cidadãos é que a informação poderia ser divulgada, ainda assim, uma divulgação pública sempre será desproporcionada, é evidente seu impacto negativo na vida das pessoas contaminadas (ou não), inclusive de crianças.

Qual a vantagem ou objetivo da exposição da pessoa? Objetivamente falando, em favor do cidadão, nenhum. Apenas o medo, o controle e a mancha sociais da pessoa.

 

Fico por aqui.

  

Elvis Rossi.

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