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CARTA ABERTA PELA LIBERDADE DE IMPRENSA

CARTA ABERTA PELA LIBERDADE DE IMPRENSA

 

Essa não é a liberdade que podemos desejar: a de que nenhuma nova queixa venha a surgir. Ninguém poderia esperar uma coisa dessas nesse mundo. Mas quando as reclamações são livremente expostas, atentamente examinadas, e rapidamente ouvidas, então a última fronteira da liberdade civil terá sido alcançada, aquela que os homens sábios buscam.

 

Devo afirmar e sustentar com argumentos que tudo iria melhor – a verdade, o saber, o país – se uma das ordenações por vós decretadas, que pretendo designar, fosse recolhida; que disso resultaria maior lustre para vosso mister de equidade e clemência. Levaria os simples cidadãos a pensar que apoio da opinião pública vos agrada mais que a outros homens de Estado a lisonja.

 

Do fundo das idades, a cuja sabedoria refinada e letras o fato de não sermos mais primitivos, eu poderia evocar aquele que, de sua própria casa, dirigiu-se aos parlamentares de Atenas, a fim de convencê-los a mudar a forma de democracia então vigente. Àquele tempo, prestava-se tal honra a homens conhecidos por sua sabedoria e eloquência, não só em seu próprio pais, mas também em outras terras, porque todos ouviam com prazer e respeito aquilo que eles publicamente condenavam ao Estado. Foi assim que Dion, estrangeiro e orador independente, aconselhou os cidadãos de Rodes a abolir uma de suas leis.

 

De quão superiores sois, excelentíssimos magistrados e legisladores, dá prova, e maior não pode haver, o fato de que obedeceis à voz da razão, de onde quer que ela vos fale e vos disponha a revogar qualquer ato por vós mesmos promulgados. Se for essa vossa disposição, e seria injurioso pensar o contrário, não sei o que poderia impedir-me de oferecer-vos um exemplo capaz de provar tanto aquele amor da verdade que vós tão eminentemente professais, quanto aquela integridade de julgamento que não vos permite a parcialidade, reconsiderando assim aquele inquérito instaurado por vós para regular a liberdade de expressão e de opinião.

 

Um bom livro é o precioso sangue de um espírito superior, conservado e guardado com vistas para a vida além da vida. É certo que nenhuma época foi capaz de ressuscitar uma vida, da mesma forma o passar do tempo raramente recupera a perda de uma verdade rejeitada, cuja falta faz nações inteiras esperarem pelo pior. Deveríamos, por isso, refletir sobre o tipo de perseguição que desencadeamos contra as obras vivas dos homens públicos. Vemos logo que se pode cometer assim uma espécie de homicídio, às vezes até um martírio, e se isso corresponde a toda opinião, corresponde a um verdadeiro massacre, pois a execução, no caso, não se esgota no aniquilamento de uma vida, mas alcança aquela etérea quintessência, que é o sopro de vida da própria razão.

 

Exemplos de censura não faltam, desde os gregos aos romanos, dos papas aos pré-reformadores, inclusive na inquisição espanhola que veio tratando de todo e qualquer assunto que não fosse do gosto deles, de modo que sua última invenção era ordenar que nenhum livro, opúsculo ou folha fosse impressa sem antes passar pelas mãos de dois ou três frades. Foi depois da reforma que essa iniquidade buscou novos limbos e novos infernos que pudesse incluir novos livros. Temo, por isso, que seu próximo intento seja o de licenciar ou não o que as pessoas dizem ou fazem, como o imperador Cláudio que tinha a intenção, mas acabou não o fazendo ao todo, quando emitiu lei que permitia soltar flatos em jantares ao saber que um homem quase perdera a saúde por educação.

 

Ficam então assim revelados aos vossos olhos os inventores e o modelo original da censura. Os frutos da mente não eram mais sufocados do que os do útero, nenhuma Juno invejosa vigiava o nascimento da progênie intelectual de qualquer homem. Assim, mais um exemplo de censura prévia vem de Juliano o Apóstata, inimigo da fé, proibiu por decreto que cristãos estudassem a cultura pagã, pois dizia que "os cristãos nos ferem com nossas próprias armas, e com nossas artes e ciência eles nos superam." E, de fato, os cristãos foram reduzidos à penúria intelectual.

 

O conhecimento não pode corromper as opiniões se a vontade e a consciência não se corrompem. Porque as opiniões são como as carnes e viandas, algumas de boa qualidade, algumas de má qualidade. Deus mesmo, na visão de Pedro diz: "levanta-te, imola e come", deixando a escolha à discrição de cada um. Alimentos saudáveis pouco diferem no mal que fazem para um estômago doente. Da mesma forma, boas opiniões para uma mente pervertida constituem oportunidade para o mal. Comida ruim não constitui bom alimento por mais bem preparada que seja. Mas aqui há uma diferença com relação às más opiniões, que servem a um ouvinte avisado, judicioso, para descobrir, refutar, prevenir e ilustrar.

 

Todo homem maduro pode e deve exercer seu próprio critério. Deus não costuma sujeitar o homem indefinidamente a preceitos feitos para crianças, mas lhe dá, confiando nele, o dom da razão. Salomão nos ensina que o excesso de conhecimento é fadiga, mas nem ele, nem outro autor inspirado, nos diz tal ou qual opinião é lícita. E quanto à queima daqueles livros pelos convertidos de São Paulo em Éfeso, a resposta é que era um ato privado, um ato voluntário dos convertidos. Sabemos que bem e mal crescem juntos no campo do mundo. Que sabedoria pode haver na sua escolha, que temperança na sua abstinência, sem o conhecimento do mal? Aquele que é capaz de contemplar o vício com todos os seus enganos e prazeres ilusórios e, assim mesmo, abster-se e preferir o que é, de fato, melhor, é um verdadeiro humano virtuoso. O que nos purifica é a provação, e provação supõe oposição.

 

Se o conhecimento e exame do vicio são, neste mundo, tão necessários à formação da virtude humana; e se é preciso escrutar o erro para a confirmação da verdade, como fazer para explorar mais seguramente e sem maiores riscos os domínios do pecado e da falsidade, senão ouvindo os tão variados argumentos?

 

Ademais, como confiar nos censores, a não ser que se lhes atribua, ou que eles mesmos se arroguem, por cima da cabeça dos demais homens na terra, a graça da infalibilidade e da incorruptibilidade? E mais: se é verdade que um sábio pode encontrar ouro em qualquer escória de opinião; e que um tolo será um tolo com ou sem o melhor dos filósofos ao seu lado, não há razão para privarmos o sábio do excedente de conhecimento e cultura no afã de impedir que o tolo também o receba, já que não haverá constrangimento para a sua tolice. Se fosse necessário manter longe do tolo o que é improprio para seu conhecimento, deveríamos, na opinião não só de Aristóteles, mas também de Salomão e do próprio Jesus Cristo, recusar-lhe os bons preceitos e, em consequência, o acesso a toda informação. Pois é certo que um sábio fará melhor uso de um panfleto ruim do que qualquer tolo fará das Escrituras Sagradas.

 

Esse tipo de censura não leva ao resultado que propõe. É tamanha a força da verdade, que ela se impõe quando tem liberdade de ação, e de forma tão rápida que nenhum discurso ou exposição metódica será capaz de alcança-la.

 

Platão, figura de maior autoridade, deu livre curso à imaginação no livro das suas Leis, que nenhuma cidade pôs em prática, nutriu sua imaginação produzindo éditos sem conta para seus burgomestres. Os admiradores do filósofo teriam preferido que ele tivesse caído e se afogado nas libações de uma noite nos jardins de Academos. Segundo essas leis, ele parece haver tolerado apenas o conhecimento previsto num decreto inalterável, limitado a tradições de natureza prática. Bastava, para servi-lo, uma biblioteca tão pequena que seus próprios diálogos excederiam os livros existentes. Nenhum poeta poderia ler seus poemas a qualquer cidadão antes que os juízes e guardiães das leis os tivessem examinado e autorizado sua divulgação. Que Platão tivesse em mente a sua Lei apenas para aquela República que ele imagina, e para nenhuma outra, é evidente. Do contrário, teria sido um guardião da lei para si mesmo, e não um transgressor a ser banido pelos seus próprios magistrados, tanto pelos textos que escrevia quanto pela leitura de autores da maior libertinagem e por recomendá-los. Platão sabia que essa censura de poemas estava ligada a muitas outras provisões de sua República imaginária, mas não fazia sentido no mundo real. Tanto isso é real que, nem ele, nem qualquer magistrado ou Cidade-Estado, copiaram o modelo.

 

Se temos a intenção de regular a imprensa com o intuito, por esse meio, de corrigir costumes, então devemos regulamentar todas as recreações e passatempos com que os homens tanto se deleitam. Que não se ouça outra música, nem se componha e cante outra canção a não ser a solene decretada. Haver-se-ia de regulamentar a dança, para que nenhum gesto, movimento ou postura que não se estimasse honesta fosse ensinada aos jovens; e para isso Platão estava preparado. Seria necessário o trabalho de quantos censores encarregados de examinar todos os pianos, violinos e guitarras existentes nas casas? Não se permitiria brincar com os instrumentos, e o que eles poderiam tocar seria regulado por lei. E quem seria capaz de calar todas as modinhas que se murmuram por aí? Cidades precisariam ser visitadas por um grupo de inspetores para sair perguntado que música tocam e gostam; qual o repertório dos músicos. E o que fazer para inibir as multidões que ousassem se comportar contra essa censura? E as roupas? Também deveriam as vestes estar sujeitas a controle. E os relacionamentos? E o que se pode ou não dizer nas mesas de jantar, ou em que momento parar? E as más companhias? E os encontros ociosos? Ora, essas coisas virão, e é bom que venham. Mas retirar o homem do mundo, confiá-lo a regimes como o de Atlântida e o de Utopia, que nunca poderão ser postos em prática, não vai melhorar nossa condição.

 

O progresso não virá com a censura, que traria necessariamente na sua esteira muitas outras espécies de censura, que nos fariam ao mesmo tempo ridículos, cansativos e frustrados. A impunidade e a indolência são, sem dúvida alguma, a ruína do Estado, mas aqui a grande arte consiste em discernir em que casos a lei deve ser invocada para restringir e punir, e quando bastará usar a persuasão. Se qualquer boa ou má ação da nossa idade adulta devesse depender de esmola, receita ou coerção, o que seria a virtude, senão um nome perdido no dicionário? Que louvor poderia merecer, então, o bom comportamento, que prêmio mereceria o cidadão por ser sóbrio, justo ou honesto?

 

Quando Deus nos deu a razão, nos deu com ela a liberdade de escolher, pois a razão é isso – escolha. De outro modo, seríamos um modelo artificial, uma marionete. Nós mesmo desprezamos obediência, amor ou presente que seja forçado. Aqueles que imaginam suprimir o pecado suprimindo a matéria do pecado são observadores medíocres da natureza humana. É evidente que é muito mais estimado o crescimento e a plenitude de uma só pessoa virtuosa do que o refreamento de dez pecadores.

 

Vendo toda semana jornal que calunia e difama ou o Parlamento, ou uma Corte, ou um personagem público, ou o Presidente; distribuído largamente nas barbas da censura. E, no entanto, poder-se-ia pensar que seria esse o primeiro serviço que essa ordem repressiva prestaria à sociedade – mostrando a que veio. Sim, diriam os senhores, mas para isso seria necessário cumpri-la. Ora, a execução é lenta e faz vista grossa, agora e nesse contexto, o que se poderá esperar dela no futuro e com relação a outras notícias? Se essa ordem não deve tornar-se letra morta, um novo trabalho, Magistrados e Legisladores, vos aguarda: repelir e proscrever todos os meios e conteúdo escandaloso e não autorizado, fazendo-se uma lista deles antes, para que todos saibam quais os condenados e quais os permitidos. Em seguida, ordenar que nenhum conteúdo estrangeiro seja posto em circulação antes de examinado. Montaremos uma para-estrutura ao Estado para implementar isso?

 

Existem conteúdos úteis e até excelentes em parte, outros em parte repreensíveis. E mais uma vez esse trabalho exigiria além de pessoas excelentes e capacitadas, ainda mais agente para os expurgos necessários, a fim de que a república perfeita não venha a sofrer dano.

 

In fine, quando a montanha de arquivos desabar sobre a cabeça deles, Vossas Excelências terão de providenciar o levantamento de todos os meios e infraestrutura nacional e mundial mais usados e mais culpadas das infrações e negar-lhes a atividade no país. Em uma palavra, para que essa ordem seja eficaz e não inócua, haverá que criar uma verdadeira inquisição, e sei que isso lhes causa horror.

 

Mas, imaginando que isso seja feito, que Deus não permita isso, a censura continuará estéril e  inadequada para a finalidade da questão. Se a idéia era impedir a ''polarização'' e a ''anti-democratização", quem seria tão ruim de história que nunca ouviu falar que há muitos movimentos que rejeitam os livros e as opiniões alheias e as consideram verdadeiro estorvo, enquanto sua tradição passa oralmente de boca em boa pelos séculos?

 

Outro detalhe que deve ser observado é a competência daquele que decidirá se as opiniões nascem ou morrem no mundo. Deverá ele ser pessoa de qualidades incomuns, ao mesmo tempo estudioso, culto, judicioso. Não poderão ocorrer erros mesquinhos na censura do que é aceitável ou não, e nem mesmo vil injustiça. Por mais consciencioso que seja, ver-se-á transformado no perpétuo leitor e ouvidor daquilo que não escolheu, e nenhuma opinião é aceitável em todas as estações. E não sei como alguém que,  ordenado a deter-se sobre o que detesta, imposição que uma pessoa que dê valor ao seu tempo ou aos seus próprios estudos, é capaz de aguentar. E, diante disso tudo, sabemos bem qual será o resultado e que tipo de censores teremos: ignorantes, arrogantes, desleixados, ou vergonhosamente mercenários. Assim, o ofício e o encargo do censor não deixará passar nada, em verdade, que escape à mediocridade geral. Daí em diante, por fim, ninguém dará mais atenção em estudar, ou saber mais que o necessário. Porque é certo que ser ignorante e preguiçoso nas altas esferas, ou um asno imperturbável nas demais, constitui a melhor garantia de uma vida feliz.

 

Verdade e entendimento não são produtos que podem ser monopolizados e comercializados por meios de tíquetes, estatutos e padrões. Não podemos pensar em fazer de todo o conhecimento no país um produto vistoriado, sujeito a controle de qualidade, com estampilhas e licenças. Isso corresponde a uma servidão, como a que os filisteus impunham de não poder afiar os machados e lâminas de arado exceto em vinte forjas licenciadas. E mais. Desconfiar das pessoas e impedi-las que leiam ou ouçam algo é o mesmo que passar-lhes um atestado de inutilidade, leviandade, como se fossem imorais, sem formação sólida, doentes, debilitadas, num estado de tão pouca fé e fraco discernimento, que não seriam capazes de alimentar-se do que quer que fosse sem o auxílio do tubo de um censor.

 

Se temos medo de nós mesmos, se suspeitamos de todos os homens, como tememos cada notícia, e receamos o tremor de toda folha antes de conhecermos o que ela contém; se é preciso que algumas pessoas, que há poucos anos estavam silenciadas, mas agora surgem e se arrogam o direito de nos impedir de ler ou ouvir exceto o que for do seu agrado, só nos resta imaginar que o que se quer é uma tirania sobre o conhecimento, o saber.

 

Ver com tanto espanto uma notícia, pelo fato de não ter sido autorizada, nos levará em breve a ver com alarme qualquer reunião "clandestina", e mais tarde transformará qualquer encontro, por mais cristão, numa reunião secreta e perigosa.

 

Mas estou certo que um Estado governado segundo normas de justiça e da constância, não pode ser tão pusilânime. Assim, expulsos os designados jornalistas, tal reforma social não pretenderia mais que substituí-los por outros, nos mesmos assentos, com outros nomes, onde a jarra da verdade não verteria mais seu azeite, onde a informação estará sujeita a uma comissão, onde a prerrogativa do povo estará abolida, e o que é pior ainda, a liberdade de aprender deverá gemer, agrilhoada pelos velhos ferros. E tudo isso com o Parlamento em sessão.

 

Essa censura pode revelar-se, então, como uma mãe protetora, mas para a verdade, ela será madrasta. A verdade é comparada a uma fonte que jorra. Quando ela não corre numa progressão perpétua, degenera-se numa poça lodosa e estagnada de conformismo e tradição. Um homem pode ser herético na verdade se crê apenas nas coisas que uma assembleia lhe diz sem conhecer outro motivo.

 

Como seria bom e desejável que houvesse unanimidade na obediência. E que belo conformismo isso nos petrificaria; sem dúvida, ficaríamos reduzidos a uma sólida e firme carcaça como a que nenhum frio conseguiria congelar.

 

Enão será o fato de privarmos o padre de sua batina, o advogado de sua caneta, ou o jornalista de sua voz, que nos fará uma Nação mais feliz, enquanto outras coisas tão relevantes para a vida e para a política não sejam objeto de investigação e reforma.

 

Magistrados e Legisladores, considerai em que Nação estais e qual governais: uma nação não atrasada e obtusa, mas de espírito ágil, engenhoso e penetrante, pronta para inventar, astuta e vigorosa para raciocinar, e de nenhum modo inferior a qualquer cimo de conhecimento a que a mente humana tem capacidade de alcançar. Porém, a obstinação da censura e da violência, no caso, nos leva a retardatários, atrasados entre os povos livres, quando poderíamos ser mestres da liberdade. Contemples a cidade refúgio que se ergueu para ser contemplada como a mansão da liberdade, a capital da Nação. Não lhe pode faltar trabalhadores atentos e fiéis para construir um povo instruído, uma Nação de sábios. E onde é grande o desejo de aprender, é grande a necessidade de discutir, de escrever, de ter opinião. Porque a opinião entre os homens de valor é conhecimento em formação. Um pouco de generosa prudência, um pouco de tolerância recíproca, um grão de caridade podem unir todos esses esforços numa busca comum e fraternal da verdade. Basta que abandonemos a tradição de sujeitar ao rigor e estreiteza de cânones e preceitos humanos a liberdade de consciência.

 

Apenas com muitos cismas e muitas dissidências talhadas na pedra e na madeira será possível erguer a democracia. Embora as pedras sejam postas engenhosamente juntas, elas não se unem continuamente, ficam apenas contíguas umas às outras. Também nem todas as peças do edifício possuem a mesma forma. A perfeição consiste no seguinte: das muitas variedades moderadas e dissimilitudes fraternais, que não são radicalmente proporcionais, é que surge a graciosa simetria que realça e valoriza a estrutura como um todo.

 

O que fazer? Reprimir essa nova safra de saber e novas luzes que se via e ainda se vê surgir diariamente? Criar uma oligarquia para trazer a fome às nossas mentes, e a ela submeter toda essa floração, reduzidas a saber apenas o que eles pensem com suas medidas? Creiam, Excelentíssimos: todos aqueles que vos aconselham o expurgo, na verdade vos convidam a expurgar-vos também. É a liberdade que valorosos e comedidos conselhos que conquistaram à Nação, liberdade essa que é a nutriz de todos os grandes talentos. Vós não podeis agora fazer-nos menos capazes, menos sábios, menos interessados na busca da verdade, se não vos fizerdes primeiro menos amantes e menos fundadores da nossa verdadeira liberdade. Para sermos menos do que somos, seria preciso que vós vos fizésseis o que não sabeis ser, ou seja, opressores, arbitrários, embrutecidos, formais, servis, como já fomos num passado não tão distante. Que nossos corações sejam hoje mais generosos.

 

Que a verdade e a impostura se degladiem. Quem jamais ouviu dizer que a verdade perdesse num confronto em campo livre e aberto? Sua refutação é a melhor e mais eficaz das proibições. Quem não sabe que a verdade vem logo abaixo do Onipotente em força? Ela não precisa de política nem de estratagemas, nem autorizações, para ser vitoriosa. Esses são ardis e obstáculos que o erro utiliza contra o seu poder.

 

Não é possível ao homem separar o joio do trigo, o peixe bom da arraia miúda. A tarefa talvez seja dos anjos ao fim da existência. Se, o entanto, a unanimidade for para nós impossível, será sem dúvida mais saudável, mais prudente e mais cristão que muitos sejam tolerados em vez de todos coagidos.

 

Qualquer magistrado pode ser vítima de falsas informações, principalmente se a liberdade de imprensa estiver limitada ao poder de alguns poucos. Mas corrigir o erro de boa vontade e com rapidez é uma virtude para aquele que tem a autoridade suprema de preferir um simples reparo do que a de quem recebeu suntuosos subornos. Virtude (honrados magistrados e legisladores), compatível com as vossas altas ações, das quais só podem participar os maiores e mais sábios homens.

 

 

 

Extraído e adaptado de: Areopagítica – Discurso pela liberdade de imprensa ao parlamento da Inglaterra, John Milton, 1644.

 

 

*Elvis Rossi da Silva é advogado, escritor e jornalista independente.

 

 

 

 

 

 

 

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