MEDICINA, SAÚDE, ESTADO E LIBERDADE – I
A MEDICINA DO FUTURO E SEUS
RISCOS
“Os grandes riscos da medicina estarão
na chamada medicina preditiva. Ela caracteriza-se por práticas cuja proposta de
antever o surgimento de doenças como sequência de uma predisposição individual,
tendo como meta a recomendação a melhor forma de preveni-las.”
“Não é exagero se pensar que
amanhã as companhas de seguro não venham considerar a pele branca de um
indivíduo um fato encarecedor das apólices apenas por uma possibilidade
vulnerável de câncer de pele? Chegará um tempo certamente, com a possibilidade cada
vez maior do reconhecimento no âmbito molecular, em que o perfil do DNA venha
indicar propensão a uma doença cardíaca ou à possibilidade do alcoolismo que
estas companhias refutem de forma peremptória ou maximizem o prêmio, tornando-o
inalcançável aos aderentes de planos.”
“A saúde as liberdades
individuais representam, num estado democrático de direito, os bens mais
fundamentais. Sendo a saúde um bem irrevogável e indispensável, cabe ao Estado
sua garantia e seus meios de organização. E a liberdade com um ganho consagrador
da cidadania e da lua dos povos.
Por isso, o certo é encontrar um
caminho onde se procure minimizar o sofrimento e o dano por meios assistenciais
à saúde sem o risco dos limites da liberdade individual capaz de ameaçar o sentido
crítico das pessoas por meio de um paternalismo secular de proteção. Não há
como existir ainda a chamada superioridade de juízo.”
“Se não levarmos em conta a
autonomia das pessoas, qualquer conceito que se tenha de saúde é ambíguo e fica
difícil para o poder público impor regras sanitárias, simplesmente porque tanto
a saúde como a doença exigem explicações.”
MEDICINA BASEADA EM EVIDÊNCIAS
“ O que se viu nos últimos anos
foi uma verdadeira enxurrada de publicações médicas, algumas em notória
contradição, o que torna mais complicada ainda a decisão dos médicos –
principalmente os que estão na ponta do sistema. Isto sem dúvida reflete de
forma negativa sobre as ações de saúde, não apenas pelos gastos desnecessários
e tempo perdido, mas também pelos prejuízos que podem trazer aos pacientes.
Publica-se, no mundo, uma média de 30 mil revistas biomédicas por ano. Se
alguém quiser estar em dia com determinados temas mais específicos deverá ler
cerca de 300 artigos e 100 editoriais por mês, nas revistas de maior destaque.
Por outro lado, no instante que a
medicina baseada em evidências tenta “clicherar” o atendimento baseado
apenas em dados estatísticos, fugindo da avaliação da experiência pessoal e da
capacidade de conduta do medico diante de cada caso, ela desfaz o conceito de
que “não existe doença e sim doentes”.
De onde provém o conhecimento
médico que se aplica diariamente na prática profissional? Será do que existe na
literatura mais sofisticada das revistas do mundo avançado? Certamente, não. É
da experiência pessoal do dia a dia, embora isto não queira dizer que sua
cultura também deixe de ser da experiência de tantos outros que publicaram ou divulgaram
seus conhecimentos. É fato inegável que o conhecimento está enraizado na
experiência pessoal, de acordo com o que se repete na prática diária do médico,
sem que isso se constitua numa propriedade intelectual ou que lhe dê sempre o
selo da autoridade. E nem sempre as decisões mais acertadas são as dos que
possuem maior notoriedade.”
“Nenhum expert pode de autoridade
incapaz de erro, mesmo não intencional, porque não existe verdade soberana. Por
isso é sempre aconselhável não se procurar certeza absoluta quanto tudo isso se
mostra impossível diante de decisões instáveis, pois os caminhos da medicina clínica
são contingentes e falíveis, e não há na sua prática “verdades derradeiras”. O
conhecimento científico está sempre em franca evolução. Sempre que possível,
deve-se avaliar uma proposição com base nos fatos e na lógica que a sustentam,
e não nas qualidades pessoais o do status de seus defensores.”
OS RISCOS DA MEDICINA
PREDITIVA
“A medicina preditiva
caracteriza-se por práticas cuja proposta é antever o surgimento de doenças...
Por tais projetos, como se vê, muitas são as questões levantadas, tanto pela forma
anômala de sua relação médico-paciente como pela oportunidade de revelar
situações que podem comprometer a vida privada do indivíduo ou submetê-lo a uma
série de constrangimentos e discriminações, muitos deles discutíveis.”
“A saúde e as liberdades
individuais representam, num estado democrático de direito, os bens mais
fundamentais. A saúde como um bem irrevogável e indispensável que cabe ao Estado
sua garantia e seus meios de organização. E a liberdade como um ganho consagrador
da cidadania e da luta dos povos.”
“Tão íntima é essa relação entre
saúde e liberdade que não se pode admitir qualquer proposta em favor da
melhoria das condições de vida e de saúde das pessoas sem se respeitar a
autonomia delas, mesmo quando elas não estão
dispostas a se submeterem a certas condutas que possam ser consideradas
de risco, a exemplo das práticas invasivas da nova tecnologia médica. Assim,
não seria exagero admitir-se que ela tanto pode ser uma forma de proposta vantajosa
como uma ameaça à liberdade individual.”
“Em contrapartida, esta mesma
autonomia que permite ao paciente o direito de informação sobre dados lhe dá a
prerrogativa de limitar o conhecimento destas verdades não permitindo que as
demais pessoas delas tenham conhecimento , principalmente quando se tratar de
seus dados genéticos. Do mesmo modo tem o indivíduo o “direito de não saber”,
ele próprio, quanto ao seu entendimento isto lhe traria perturbações de ordem
psíquica capaz de alterar suas emoções, a exemplo de doenças futuras ou
incuráveis, principalmente quando tais exames foram impostos por interesse de
terceiros.”
“A tendência atual dos que
representam o sistema de saúde é falar sempre dos interesses de saúde da comunidade,
sem discriminação, sem limitação de qualquer natureza. A dúvida está num fato
só: saber se, nos casos em que a sociedade permite o aborto, os fetos são ou não
considerados pacientes.”
“Deveria o Estado ir além da educação
e punir o comportamento maternal irresponsável, impondo sanções civis ou
criminais quando venha a ocorrer um dano real ao indivíduo? Deveria o Estado prevenir
o dano antes que ele ocorra, punindo e obrigando ao tratamento? Tudo faz crer
que não.”
“Dentre os direitos sociais, a
saúde se apresenta como um direito essencial da personalidade, pré-requisito básico
de qualquer estado democrático que tem como projeto o alcance da cidadania. Por
isso a saúde não pode ficar circunscrita apenas aos seus aspectos psicofísicos,
mas deve se estender aos limites de sua liberdade existencial. Dentro desta
premissa, o chamado “consentimento livre e esclarecido” não deve ficar apenas entendido
como regra na relação médico-paciente, mas no respeito à vontade do paciente
onde o direito à saúde é um direito fundamental de cada homem e de cada mulher.
Esta é uma forma de devolver ao indivíduo sua própria soberania.”
Geneval Veloso de França: Direito Médico, 12.ª edição. Forense,
2014.
Continua no próximo artigo.
*Elvis Rossi da Silva é advogado e escritor.
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